segunda-feira, outubro 30, 2006

Uma vida menos ordinária.



A puta ri-se o velho também. A música não é importante, nem o perfume barato nem os botões de punho em ouro que já tinha levado ao seu casamento. Nem a roupa comprada no chinês ou os saltos roídos pelo passeio têm importância. O velho é bonito para a idade, a mulher tem alguns quilos a mais mas até isso lhe dá uma certa graça ou prazer.

Há tabaco e álcool a mais, dentro e fora da coragem que mesmo agora vão usar.

Ela não escapa e ele não se importa de pagar por isso. Estão os dois convencidos que nenhum desconfia das suas verdadeiras razões. A puta e o velho estão felizes e tristes, cada um à maneira do outro.

Fotografia: Thierry Le Gouès

sexta-feira, outubro 20, 2006

Saída de cena.

Mais um morto nesta semana. Foi um primo meu que gastou o corpo em 45 anos. Excessos de tabaco, álcool e vontade de comer bem fizeram-lhe as vontades todos os dias até hoje. Vivia com os pais mas devia sentir-se só, nunca lhe vimos uma namorada, seria portanto homossexual ou abstinente como Kafka (não pelas mesmas razões deste, obviamente).

Tinha também uma veia de Keith Richards, o seu corpo, ou tubo de ensaio se preferirem, foi palco de cenas como: o peito a estalar com falta de ar e na mão direita segurava e utilizava a bomba da asma, enquanto na esquerda mantinha um cigarro aceso para fumar nos intervalos das bombadas.

No fim, os mortos saem sempre em ombros. Ainda bem que é assim.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Ai a minha vida.



Descansa, com medo, agarrada à minha perna. Aviva as aparições cobardes que me visitam quando vais trabalhar. Sou uma desgraça, uma espécie de balhana embargada, incapaz de me levantar ou fazer um café. Só sei amar-te como nunca ninguém te quis. E tu sabes disso, ai se sabes, sabes tanto que me queres soldar a ti. E eu que nem mereço uma terroada na cabeça, quanto mais essa cúmulo de lágrimas e de céu plúmbeo.

Levanta-te mulher que não trouxe os comprimidos ou a faca capazes de me amaciar o peito. Vens tu falar de palmadinhas e de coisas com a boca. Queres matar-me?

E depois a coroa de flores, a quem é que pedirias emprestado para a pagar?

Fotografia: Thierry Le Gouès

sexta-feira, outubro 13, 2006

R.E.M.

De joelhos, vou matar-te aqui. Ensina-me a mexer com isto. O que é o cão? Aponta com o queixo. Tens os lábios a tremer. Não é um trabalho bonito, dizes tu? Então o que será? Se calhar pensavas que te deixava ir assim. O quê? Um sonho? Estou no teu sonho a atormentar-te com esta parvoíce? E tu sempre foste assim? Sempre percebeste a diferença entre o que sonhas e a realidade? Então fazemos assim, para isto não acabar já vou desamarrar-te e tu arrancas por ali a correr. Vais ver que quanto mais tentares correr, mais pregado ao chão vais ficar. É sempre assim nos sonhos.

Amanhã vamo-nos fartar de rir quando me contares isto. O que queres? Não podem ser sempre sonhos em que apareço nua.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Dobro ou nada.

Nunca fui feliz, ou então sempre fui feliz a dobrar. Tenho uma mulher com o peito generoso e uma amante que nunca quis procurar melhor. Até tenho filhos das duas, dois da legal e uma da que nunca me conseguiu desencaminhar. Como eu, nunca percebi se foram felizes, se calhar não. Bem, tenham sido ou tenham esperado, chegou a hora. Restam-me poucos dias e preciso de me despedir. Terei uma para sorrir quando os paramédicos já estiverem cansados, agora da outra terei que me despedir antes, hoje talvez.

O meu neto leva-me lá, com vergonha, mas leva. Combinei que não abrirá o bico a não ser para quem quiser ou achar que deve. Paguei-lhe a carta, isto é o mínimo que lhe poderia pedir.

Este é um bocadinho da história dos últimos dias de um amigo que morreu na semana passada.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Valsa.

Há um homem que já não tem idade para se alistar para a frente. Está triste e bebe como costume. Guarda o umbigo do filho numa caixinha, acha que era duns brincos que ofereceu à mulher aqui há uns anos. Está no bolso do casaco que ainda tem o forro em condições. Já lá foi com a mão muitas vezes, mais do que ao que tem a carteira. Tem saudades da mulher e do filho, das valsas, dos polícias e dos ladrões. Não sabe para onde vai mas espera ter tempo para guardar a caixinha muito mais tempo. O umbigo até é feio mas o seu antigo dono merece umas quantas orações. Lá está, não sabe rezar mas vai aprender com vontade.

E a vontade não lhe falta, a coragem sim. O seu problema sempre fora esse, quando tinha coragem faltava-lhe a vontade e quando se cansava de vontade nunca o deixavam falar.

Dessem-lhe uma espingarda e veriam como aquela conformação morderia. Ai o sabor a ferro! Esse odor e essa luz que entraria, se Deus quisesse, pela vida dos outros adentro.
A grande paródia.



Je t’aime moi non plus - Miss Kittin e Sven Vath

quarta-feira, outubro 04, 2006

Moléstia.

Em "Por quem os sinos dobram" de Ernest Hemingway existe uma grande paixão em que Robert Jordan trata Maria por adorada coelhinha. Tenho pena que assim seja, mesmo com a distância temporal descontada, adorada coelhinha ainda é uma expressão que me parece pouco apropriada.

O autor repete-a muitas vezes aquando do primeiro encontro carnal entre os dois. E o problema deve ser o patamar onde adorada coelhinha se encontra: nem é romântica nem suja o suficiente para ser utilizada por duas pessoas que se amam.

terça-feira, outubro 03, 2006

Sangue cigano. Eu sabia que estes nervos tinham que vir de algum lado.

O meu avô percebia muito de máquinas agrícolas e o meu bisavô chamava-se João da Ponte. Tinha este nome porque nasceu debaixo de uma ponte, parido por uma empregada da família Palha. Naquele dia ela e mais umas assustadas perceberam que a paixão pelo cigano fugidio chorava mesmo muito alto.

A minha mãe contou-me isto mas não me disse qual era o ofício ou especialidade do João da Ponte. Só disse que eram tempos difíceis e que o bisavô João mandou o Avô João estudar para Lisboa, coisa magnífica na altura.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Everybody Hertz.



People in the city – AIR, live at the Mayan Theatre

Segunda-feira. Ontem deu chuva para hoje, como se uma segunda-feira pudesse dar outros ares que não estes. Cidades cheias, ruas escorregadias, carros de todas as cores com donos atrasados de todas as cores. Candeeiros de rua acesos, baralhados com a luz do dia ou da noite.

Vou fazer-me de morto, e voar por cima de toda a gente.