quinta-feira, junho 29, 2006

Simples.

Ele sentia uma corda no pescoço e o seu nó de mares que já afogaram demais. Ainda bem que a paixão não é tão visível como um capachinho.

As pessoas mais simples nunca retirarão a dor e o prazer possíveis dessa brutalidade. As suas relações, tal como elas, serão sempre uma prova de desperdício.

quarta-feira, junho 28, 2006

Ocupa o melhor lugar.

O meu avô ensinou-me a afiar uma faca:

Molha-se a pedra e passa-se a lâmina para cima e para baixo sem pressa. Um lado do gume quando vai acima, o outro lado quando vem para baixo. Depois da pedra de amolar, deve-se usar uma lixa de água, a mais fina que se encontrar. Molha-se a lixa, e passamos a lâmina, não só da mesma forma que na pedra, como também no sentido do corte, como se fossemos cortar a lixa mas com a lâmina quase paralela a esta, depois deste movimento a folha deve estar perfeita. Experimenta-se no polegar esquerdo: a faca está pronta se, sem qualquer pressão, lascar superficialmente a unha. Deve-se sempre avisar quem costuma usá-la.

Para saber se o aço é bom, bafejamos a lâmina e vemos o tempo que a humidade leva a desaparecer. Quanto mais rápido, melhor.

Tenho saudades de aprender. Ensina-me a dançar ou a ler.

terça-feira, junho 27, 2006

Faz-me um desenho.



Rascunho. Quero um rascunho, coisa feita à mão. Poupa-me a automatismos e a palermices eléctricas. Nada de truques ou sapateados.

Basta-me algo como um namorado novo. Como se fosse feito quando ainda nem são precisos preliminares. Lembra-te que no princípio até uma conversa faz suar.

sexta-feira, junho 23, 2006

Reza.



Tens a mesma mansidão dos que são demasiado novos para morrer. Doçura e sapiência são temperos raros, próprios da tua perfeição ainda inexperiente. O sono já te abandonou, era bom que a vergonha fosse a próxima. Pensas que um remédio te irá acalmar mas acho que desta vez nem um santo te valerá.

E o futuro que é tão estreito. Lá só cabe a honestidade das promessas que nunca serão feitas ou pagas. Será perfeito, portanto.

Fotografia: Miles Aldrige

quarta-feira, junho 21, 2006

Embora fingir que tínhamos uma vida?



Vou até à igreja, depois passo pelo campo e vejo o fim do jogo. Ainda deve dar tempo para ir até à leitaria e sentar-me cá fora a ver os velhos, as suecas e os sinais.

A vida é um conjunto de ficções sociais, como dizia o outro. Há dias em que preciso mesmo de perceber que errei as respostas todas. Por falar em citações revolucionárias, nunca me esquecerei daquela sem arranjo: Everything you know is wrong.

É por andar de olhos abertos e à pressa que preciso das mentiras lúcidas dos outros.

Fotografia: Sam Haskins

sexta-feira, junho 16, 2006

Johnny Walker.



Desculpa mas não me vou virar. Quero aproveitar este último tempo para guardar mais uns bocadinhos teus. Depois de nos despedirmos vou andar de costas, sempre virado para ti até dobrares a esquina.

Uma vez vi os alunos de um conservatório a fazer um exercício parecido com esta desgraça: andavam de costas, subiam ruas e tentavam adaptar as novas pernas a um passeio gasto.

Andar para trás? Claro que não, isso ninguém consegue fazer. E, caso fosse eu o primeiro a consegui-lo, isto não seria a nossa despedida.


Fotografia: Sam Haskins

terça-feira, junho 13, 2006

Modo de vida.

Aproveitar estes feriados para ler mais, alugar filmes importantes que se perderam no cinema e acima de tudo efectuar trabalhos de manutenção na casa e no carro.

I want to live like common people.
Do you want to sleep with common people like me?



Common People - Pulp

sexta-feira, junho 09, 2006

A primeira vez que forcei a linha dos teus dentes.



Estou num carro embriagado, num carrossel com parafusos a cair, num mar sem bandeira, num sonho, pendurado numa ponte com alguém a pisar-me os dedos, numa bateira virada, deitado num corredor de hospital, com lâmpadas fundidas, a ver marcas de unhas nas ombreiras, a cheirar o sal do meu próprio suor, a chorar, a querer correr sem poder, como no sonho lá de cima, mudo, de vida e de camisa, como quem muda de forças.

Fotografia: Sam Haskins

quarta-feira, junho 07, 2006

O último Landay.



Se dormes, só terás poeira
Eu pertenço aos que, por mim, não dormem a noite inteira

Fotografia: Thierry Le Gouès

terça-feira, junho 06, 2006

Se não tiveres feridas no meio do peito
Ficarei indiferente, mesmo que tenhas as costas esburacadas como um passador.

Os outros estão aqui:

Mais dois Landays.



Não haverá um só louco nesta aldeia?
As minhas calças cor de fogo ardem-me nas coxas

A minha boca é tua, devora-a, não receies nada
Ela não é de um açúcar que se dissolva


Fotografia: Thierry Le Gouès

segunda-feira, junho 05, 2006

Um primeiro Landay.



Ontem à noite estive com o meu amante: uma noite de amor que não se repetirá.
Como um guizo, com todas as minhas jóias,
tini em seus braços até ao fundo da noite.

Este e outros Landays irão aparecer por aqui. Landay significa “o breve” e é um poema popular curto composto por dois versos livres de nove e treze sílabas, sem rimas obrigatórias. É originário do Afeganistão e são as mulheres pashtun, escravizadas pela sua vivência que os criam. São uma espécie de gritos que comprometem tudo, principalmente os homens desta comunidade.

Fotografia: Zalmaï

quinta-feira, junho 01, 2006

Aparição.



Ah, és tu. Ainda bem que vieste. Já tinha saudades dos milagres que fazes nesta casa.

Fotografia: Thierry Le Gouès