segunda-feira, janeiro 30, 2006

Nada iria ser como depois.



Imagino-me casado contigo. Numa destas relações modernas, em que, por exemplo, seria eu a vazar a máquina da tua roupa interior. Novamente a desdobrá-la e a expô-la ao vento que nunca me saiu da cabeça. Tenho as mãos a tremer, húmidas e sem vergonha nenhuma.

Fotografia: Peter Lindbergh

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Pai?



Quando era criança lembro-me de perder de vista os meus pais. Olhava à volta e só via pânico, depois descobria o meu pai a sorrir sentado na mesma cadeira da esplanada.

Era o fim do mundo e uma aparição divina, ali, em menos de 10 segundos.

No fundo era uma explicação da própria vida e nem eram precisas palavras.

Fotografia: Peter Lindbergh

terça-feira, janeiro 24, 2006

Sindroma de Estocolmo.



No dia 23 de Agosto de 1973, três mulheres e um homem foram feitos reféns num assalto a um banco de Estocolmo. O rapto durou 6 dias.

No final os reféns acabaram por desenvolver uma relação especial com os raptores e duas das mulheres acabaram por casar com eles.

Fotografia: Herb Ritts.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

A idade e o peso.



Dentre as coisas que não sei lidar, o peso na consciência de ter alterado o destino de alguém é das maiores. Sei que a minha gestação e nascimento alteraram o da minha mãe para diante. Mas esse não me vem pedir contas, afinal delas não tive a culpa.

Agora os outros é que não sei. Que legitimidade tive eu de ter estudado e saído à noite com aquelas pessoas? Interferido nas bocas novas, dito as verdades da altura e prometido mundos sem fundo? E a responsabilidade de convencer alguém do que vejo?

Até as moedas que dou a um arrumador fazem parte da sua morte a prestações.

Terei o direito de alterar alguma coisa?

Não quero mudar nenhum mundo, por mais pequeno que seja.

O meu destino deveria ser apenas um anfitrião exímio em dizer que não estou.

Fotografia: Herb Ritts.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Como se fossem sete vidas.



A inexperiência dos namorados assusta-os.

- Porque paraste?

- Que barulho foi este?

- Não sei, mas deve ter sido um gato ou assim.

Fotografia: Herb Ritts.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Senhoras e senhor.



Ouço vozes. Apresentam-te como se a minha vida fosse um programa de variedades com demasiadas lantejoulas. Numa sala com fumo e ao mesmo tempo num coreto de Inverno. Bebi demais, as palavras começam a ser demasiado redondas para a língua. Há palermices como uma banda de carecas e bolinhos picantes ao lado dos beijinhos.

A tua voz na minha cabeça sem se calar ou esmorecer. Tombada como o vinho da fartura. O meu peito é uma miséria engravatada.

terça-feira, janeiro 17, 2006

A Quai.



Gosto de máquinas. Um acordeão ou uma bomba de tirar água servem na perfeição para me distrair. Se pudesse parava em todas as esquinas a observar coisas que não compreendo. Fascinado como alguém com dois anos a recolher insectos ou beatas.

E automatismos? O coração a acelerar no final como uma música cigana ou um grito de presa. Dançarinos empenhados em rodas vivas e vestidos suados, a rir e a ajeitar o que resta do penteado.

Sacode o decote e pede-me para te soprar a nuca. Isto é apenas um intervalo.

Fotografia: All is full of Love - Bjork.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Rubor.



Transformas-me em qualquer coisa que não sou bem eu quando nos encontramos. Parece que recolho para dar lugar a alguém que vai fazer boa figura por mim. Coro, sorrio, digo coisas que nunca soube e guardo as migalhas das tuas frases.

Fico atrás das palavras que te servem de entretenimento. A estimar-te como quem adormece um filho com pouca febre.

Fotografia: Helmut Newton.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Até amanhã.



Uma vez escrevi: A paixão não é uma mentira, é uma verdade esfarrapada. Há pouco tempo recebi um e-mail de alguém que ao ler o Estranho Amor a encontrou e que me perguntava se a dita era minha. Eu disse que sim, meio a admirá-la, meio a lembrar-me do que a inspirou.

Depois lembrei-me dos dias em que o peito nos estala de ansiedade e em que ouvimos um hoje não vai dar porque é o aniversário da minha tia. Recordo-me da perdição, rancor e nulidade dessas horas que não passam, do desespero que é um agora só amanhã. O mundo acaba nesse telefonema. O céu nunca esteve tão perto de nos enterrar.

Fotografia: Helmut Newton.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Cottonmouth.



Às vezes até uma alcunha serve para nos colocar o organismo em colapso. Não tem a ver com o veneno ou com a serpente, tem a ver com as saudades.

Tem a ver com ataque, com ferocidade e com as tangentes da morte.

domingo, janeiro 08, 2006

Arquivo vivo.



O tempo valoriza as memórias tal como faz com o vinho. Assalta-me cada vez com mais frequência o medo de perder alguma das minhas. Bater com a cabeça ou ter uma doença com nome alemão são coisas que me fazem tremer a perna. Ainda hoje pensei em salvaguardar algumas por escrito mas a inércia ganha sempre aos poucos.

Depois lembrei-me que pior que perder as minhas era perder as tuas. E já agora as de todos quanto amei. Seria quase uma falta de respeito para com os anos que subi a pé.

Nada me faz mais falta do que aquilo que já tenho.

Fotografia: Helmut Newton.

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Adeus.



Entre os hábitos que perdi com o crescimento, há um que vou retomar um dia destes: passar a usar lenço. Tal como o meu pai e o meu avô, também eu fui influenciado, a partir de certa altura, a sair de casa com um quadradinho de tecido engomado em muitas partes.

Serviam para tanto que nem sei porque os deixei para trás.

Nas horas de adeus, e nas outras, não quero cá coisas em papel. Quero carne, lágrimas e algo que me ensope a alma. Quero coisas com o meu cheiro e com o meu desmazelo.

Fotografia: Getty Images

Lágrima.



Fotografia: Getty Images

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Passa outro e até parece o mesmo.



Há dias em que nada acontece. Nesses, a vida limita-se a completar o calendário. Existem porque sim e ela esperançada num depois melhor. Para amanhã, nada a declarar.

Às vezes gosto desta madorna. O excesso de tempo lembra-me sempre um relógio apressado de amante.

- Novidades? Ninguém morreu, fugiu, bateu com o carro ou foi apanhado com outro na cama?

- Não, nada. Hoje nem as flores do adro mudaram.

Fotografia: Helmut Newton.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Perdição.



Tenho pena de pessoas dependentes de um único vício ou virtude. Sobre elas pende o desespero fácil do destino ou um acumulador de frustrações. Nada há de mais triste que um escritor falhado ou um músico de metropolitano.

Apenas percebo um homem ou uma mulher que pintem a vida e o cabelo de preto para agradar a alguém que os roubou.

Fotografia: Helmut Newton.