domingo, outubro 31, 2004

Reduto de tudo.



Na infância, lembro-me de tapar a cabeça com o lençol e pensar que estava no melhor esconderijo do mundo. Sentia-me protegido contra luzes, sombras, palavras, frio, ladrões e pesadelos, inacessível a qualquer coisa que me pudesse apoquentar.

Hoje, rio-me da inocência mas tento usar a mesma técnica para o frio e para as saudades.

sexta-feira, outubro 29, 2004

Solitária.



A tua lembrança localiza-se entre a garganta e o fundo do peito. É bem aqui que me faltas. Consigo-o apontar com a clareza que me falta no espírito. Por aqui está tudo assustado, agachado, à espreita de uma graça divina. Como um foragido que ouve os latidos da prisão ao longe. O pânico da Lua enregela-me o arrependimento.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Oh não! O que se perde.


Quando somos novos não sabemos distinguir o que interessa, só sabemos do que gostamos ou não.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Precipitação.


Gosto de um guarda-chuva grande, daqueles com bico. Quando a chuva acaba dá para escrever o teu nome na terra molhada.

Foto Getty Images

Quem me dera serem meus os olhos a verem-te nua todas as manhãs.

Exilado.

Deitado na inquietude, vejo a minha alma a trair-me com as tuas recordações. Sorrisinhos e olhares que alimentam fantasmas trocados. Não consigo ouvir o que maquinam. Só o que me desiludem.

Passam por mim com um encontrão no ombro que desprezaste.

terça-feira, outubro 26, 2004

No fundo, todos os cuidados são muitos.



Os netos dos nossos filhos não saberão quem fomos. Irão rir dos penteados, das músicas e das roupas que escolhemos.

Com sorte, sentiremos as suas bochechas rosadas a fugir de um dos nossos últimos beijos.

Ainda assim, existem pessoas que usam creme para as rugas.

Divisão da Alegria.



Este é um grande disco em qualquer parte do mundo. Interpol a cheirar a Joy Division.

São faixas como a segunda, Evil, que me vão provando a insanidade: 4 a 5 vezes ao dia, antes ou depois das refeições.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Certeza absoluta sem grande convicção.


As horas certas estão nos ponteiros de um relógio partido. A marcar uma das piores invenções da humanidade: a medição do tempo.

sexta-feira, outubro 22, 2004

Mouchão.



Todas as pessoas têm dentro terrenos baldios. Espaços sem dono, vazios e por vezes fascinantes. Zonas de reserva à espera que as licenças para amar sejam deferidas.

Valas, caniçais, lodo, riachos, pássaros e pneus velhos. Manilhas desactivadas e cheiros de Inverno à espera das almas dragadas.

Draga
substantivo feminino · aparelhagem flutuante destinada a escavar os fundos submersos;

· pl.
escoras que sustentam a embarcação em seco;

(Do ing. drag, «id.», pelo it. draga, «id.»)

quinta-feira, outubro 21, 2004

A Pergunta que se levanta, a resposta que se esconde.

Com que sonham os cegos de nascença?

Onde estão os meus sapatos?


- Já Vais?

- Sim. Tem que ser.

- Pois. Assim levas para bem longe a mulher que amo. Olha, estão dois saquinhos em cima da mesa da cozinha, quando saíres, leva o das promessas.

quarta-feira, outubro 20, 2004



Tudo o que existe pode ser resumido a números ou expressões matemáticas.
Deve ser por isso que o Amor tantas vezes é infinito.

terça-feira, outubro 19, 2004

Há muito tempo atroz.

Nada entre nós pode correr. As coisas não podem ser piores e, mesmo assim, tentamos ser iguais.

Nunca fizemos Amor. Este, dá a sensação que se fez a ele próprio e que se consumiu sem deixar nada que me agarre à decência da rotina.

Guardo a sombra que te abandonou por ser incompatível com os teus olhos.

domingo, outubro 17, 2004

Play the record again, James.



Acabei de ligar o gira-discos, desactivado há pelo menos 10 anos. O equipamento não é topo de gama e eu não tenho uma discografia em vinil que justifique a reactivação. Contudo, permitiu-me ouvir, por exemplo, este medíocre LP do James Last editado em 1976 que era do meu pai.

Fui buscar forças daquelas que os atletas olímpicos arranjam sem saber onde e que lhes permite bater recordes.

4. Allegro Energico e Passionato – Più Allegro [9’19].



Música para este Inverno e para esta vida. O tributo da Deutsche Grammophon a Carlos Kleiber é uma obra-prima. A sua obsessão pelo perfeito baptizou-o como recordista de concertos anulados à última da hora. Abençoado seja.

sexta-feira, outubro 15, 2004

Pior que a tua ausência é a tua presença constante em mim.

Revelação condicionada.

Para mim, o termo propriedade privada tem um único significado:
Alguém que pertence a outrem que não se encontra de momento.

P.S. Os termos propriedade e pertence referem-se em exclusivo a relações passionais. Qualquer semelhança com outras realidades é pura coincidência. Todos os direitos reservados aos legítimos cônjuges, namorados ou amantes.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Foi só um sonho, sossega.

Quando era pequeno costumava sonhar:

- Que ia a cair numa vertigem de pânico e suavidade;

- Que pedalava as bicicletas mais bonitas e maiores, mas estas não andavam nada;

- Que andava nu na rua (apesar de ser um sonho a vergonha era real).

Tráfico de Influenza.

Estou constipado. Sei que decorre em mim uma luta titânica entre monstros minúsculos. Uns que já faziam parte da mobília e outros que entraram armados em espertos.

Como se não tivesse suficientes cá dentro, ainda apareceram mais estes que atemorizam os beijos que dou.

quarta-feira, outubro 13, 2004

“Haja o que houver, há-de haver sempre um homem para uma mulher”

O melhor de um dos mundos.



- Já reparaste que a estupidez é a maior multinacional.

- Já. Mas olha que o Amor também é igualmente global.

- Pois é. Amo-te estupidamente.

terça-feira, outubro 12, 2004

A arder desta maneira, só pode ser Amor posto.



Encarnado de vergonha e de prazer galopante. Arrepio ao rubro. A inocência alastrou-se incontrolável à tua boca de incêndio.

Suor e lágrimas sorridentes internam-se no meu peito. O céu a transbordar. As chamas lambem-me o juízo e a sua falta.

sábado, outubro 09, 2004

Liquidado.

Uma punção na alma. Irremediável, a vazar-me do teu adeus. Dá-me mais um minuto, daqueles que faltam ao ferido de morte para dizer quem lhe acertou.

sexta-feira, outubro 08, 2004

- Então, o que fazes na vida?

- Amo-te.

Mais olhos que coração.



As casas são cada vez mais limpas e brancas. Os móveis já não conseguem ser mais lisos. Tudo para que corramos mais rápido. Que nada se interponha entre nós e a ausência ou estímulo involuntário.

Pensamos controlar tudo, até o riso provocado pelas molduras desarrumadas das nossas avós. Tristes, sem perceber que em cima daquele naperon está muito mais do que um espremedor de citrinos cromado.

Custa-me a perceber do que fogem as pessoas. Querem, sem querer.

quinta-feira, outubro 07, 2004

O Estranho Amor – Prova nº 1.



- Não preciso de te provar nada. Nem mesmo que o Amor é estranho, senão repara em nós daqui a seis meses.

- É verdade. Daqui a seis meses seremos estranhos. O que ontem foi permitido amanhã será castigado. A licença para beijar, tocar, sentir e amar caduca agora mesmo. Ainda assim, quando nos cruzarmos, sentiremos qualquer coisa. Quanto mais não seja a saudade imensa de um corpo que, há muito, foi o nosso.

- Acabemos com a conversa. Bem basta o choro que me alaga o peito. Adeus.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Sal.

Gosto de ir à praia, sentir o cheiro da infância e revisitar tudo o que ali guardo. As ondas alisam-me a alma como a areia húmida nas marés baixas.

De ouvidos bem abertos.

“Promove, junto dos teus filhos, a virtude em vez do dinheiro. Em tempos de miséria foi ela que me ajudou.”

Uma das verdades que Beethoven deixou no seu testamento escrito há precisamente 202 anos (25 antes de morrer, quando era já surdo).

segunda-feira, outubro 04, 2004

Improviso.



Na vida real nada é ensaiado, nada é repetido ou treinado. Tudo sai à primeira, para o bem ou para o mal. Tudo é espontâneo, directo e súbito.

E os beijos na boca? Com sabor a roubo, inexperiência ou grandeza?

A ficção é difícil. A vida real é uma fixação.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Preito.



Gostava de voltar a beijar
- Todas as mãos que me tocaram;
- Cada um dos olhos que me procuraram;
- Todas as palavras que me amaram;

Numa espécie de homenagem e despedida. Como as que fazem a actores usados, de preto e de farsa. Numa sala e sob todos os holofotes, a agradecer o ridículo de não ter sabido amar quando devia.

Redenção.

Após a lapidação a que a critica de “Lost in Translation” me condenou, resta-me atirar-vos cópias do “In the Mood for Love” de Wong Kar-Wai. Apesar de ser de Hong-Kong, é mais a minha Tsunami.