quinta-feira, março 31, 2005

Segundos Socorros.



É tortuoso o nosso caminho. São ramos, veias e ruas. Vejo-o nas copas da vida, através da tua pele, à flor dos pulsos ou do peito nu. Por lá passam os teus e os meus dias.

quarta-feira, março 30, 2005

Fim.



Conhecia uma pessoa que se suicidou ontem.

A vida nunca é como queremos. A morte, por vezes, é.

terça-feira, março 29, 2005

No dia que soube a Homem e a Mulher.



Cada vez que a minha mãe me limpava o quarto desapareciam-me sempre coisas sem as quais não podia viver. O esmero era tal que vi-me obrigado a recomeçar a minha própria vida do zero várias vezes. A adolescência espalhada por caixas e gavetas sem fundo era presa fácil dos seus sorrisos. Em breve ia perder-me. Penso que deve ter guardado algum do valioso lixo que fingia deitar fora.

O tempo faz o mesmo comigo ainda hoje. Tenta recolher peças perdidas e pratas de chocolate espalmadas em livros que já não são para a minha idade. Esforça-se por desviar lembranças que não conhece. Não sabe que, para mim, algumas são sólidas como as âncoras dos maiores navios. Prendem-me ao fundo das lágrimas de alegria que chorei.

Como as que caíram numa quinta com pavões. Na minha terra. No dia em que ganhei o Amor e perdi a inocência. Na noite que não dormi. Na vida que julguei não estar reservada para mim. Num banco igual ao que me levará até ti no fim dos dias grandes.

segunda-feira, março 28, 2005

Só não vê quem não quer.



Rio-me da fama que alguns têm, dos ídolos e da devoção que lhes é rendida. Rio-me das lendas das pessoas mas gosto das dos animais. Os pelicanos, por exemplo, já foram vistos por pescadores a amarem as crias até à morte.

Dizem que, em desespero, cravam o bico no próprio peito e que alimentam os descendentes com as suas entranhas.

Também há quem diga que isto é mentira e que o sangue que lhes tinge as penas é dos peixes carregados no bico.

Apesar da explicação, acredito na lenda. Prefiro um peito desfeito do que uma verdade esfarrapada.

quarta-feira, março 23, 2005

Mais olhos que barriga.



Mil vezes queria ser criança e não crescer. Mil vezes queria aprender a andar direito com os meus próprios filhos. Que me mordam os braços e que desatemos a rir passados dois minutos. Que saudades das férias e dos cardos.

Quero chorar pelo motivo mínimo e pasmar com um moinho de água. Rodar até cair. Esfolar os joelhos e beber leite por uma palhinha.

Isto é pedir muito mais do que o que consigo aguentar. Pelo menos isto.

segunda-feira, março 21, 2005

Lembras-te?




É possível amar aos poucos, estar apaixonado durante muito mais do que o razoável. Consegue-se ir garimpando cada sorriso, cada sabor e cada enquadramento em que te mostras.

Consigo distinguir cada pulsação, cada sopro e cada ferroada do teu corpo. Sou capaz de desmanchar-te no escuro, sentir-te a qualquer distância, ouvir-te de olhos trancados e achar que adivinho que roupa trazes por baixo dessa.

- Lembras-te de tudo o que ouviste falar acerca do Amor até hoje?

- Sim?

- É tudo verdade.

Tal como um passado inexperiente.




Ao contrário do que dizem que devia, continuo a revisitar sítios onde passei grandes momentos. Estive na Rua do Cais em Alhandra onde aprendi com o meu avô todas as importâncias do Tejo. Foi lá que ele, eu e o seu querido filho fomos felizes. Demasiado, diria eu agora.

A casa que viu o Sol a entrar com a mesma alegria com que eu sonhava está agora morta. Reparei na maçaneta da porta e nas esfoladelas do branco que ainda sabia de cor. Também vi as barras de ferro que fixavam a tábua que parava o princípio das marés vivas.

Arranquei com o Tejo todo a saltar dos olhos. A minha vida dali acabou há muitos anos. Como uma cadela inexperiente, tanto quero os filhos do passado que acabo por matá-los.

quinta-feira, março 17, 2005

Um dia, tudo o que a minha vista alcança será teu.




Fascinam-me as paisagens e os horizontes. Gosto de espreitar o mundo, de ver as chaminés, o rio, o mercado, as estradas e a falta de limites. Penso em todas as vidas que o meu olhar abraça.

Quantas serão? Quantos pais estão a depositar o futuro ao lado no berço? Quantos beijos vão de uma ponta a outra do que a minha vista alcança? Sei que estão pessoas a fazer Amor numa das mil janelas acesas. Maridos a falhar as horas de chegada e gritos de mãe para a hora do jantar.

E tu? Podias estar num dos carros que passam demasiado longe. Ou podes estar a olhar para a Lua neste preciso instante. Ainda se notam as nuvens e alguns dos desenhos que só eu consigo ver.

quarta-feira, março 16, 2005

Olhai o delírio do mercado.




Uma vez ouvi uma cigana a rogar a seguinte praga:
“Devias apanhar uma febre tão alta que te havia de derreter a fivela do cinto”

Não cheguei a saber se o freguês falhado passou a utente de um qualquer banco de hospital. Nem sei se algum metal incandescente lhe escorreu pelo corpo.

Penso se não terei sido salpicado por aquele desejo de flagelo. Por simpatia, já que por ali andava ao Deus dará.

É que basta ver-te para as diferenças incisivas de temperatura e as cicatrizes sem nome me internarem.

terça-feira, março 15, 2005

A falta que me embala.




Há uma paz que corrói, aquela que me faz ouvir a passagem do próprio sangue. Há um sossego que se esconde e um desfile de imagens que fazem rir o escuro. Tenho vergonha de não me obedecerem as mãos quando passas. Se ao menos a tua boca me ouvisse.

O tempo roda à minha volta sem passar.

Tenho esta perna dormente. São as saudades que me apertam com o peso do deserto que aqui brinca.

segunda-feira, março 14, 2005

É por estas e nunca por outras.




Gosto de imponderáveis, de tudo o que quebra, rasga, nasce, ama, ensombra e foge sem pagar. Acidentes de química, sorrisos gratuitos e malhas puxadas ao calçares as meias.

Flores silvestres, que não pediram para nascer aqui, nem ali. De várias cores, semeadas pelo sopro de muitos corações, aproveitadas para temperar e para arranjos.

Nuvens com a forma de saudades a dissipar e pássaros que calharam voar longe de mim.

sexta-feira, março 11, 2005

- Sobremesa? - Dois suspiros, por favor.



Numa sala esquisita, com música de um mundo desafinado, quase vazia, dois ou três aromas estrangeiros e um empregado distraído:

- Trouxeste a saia?

- Claro, e tu puseste o perfume?

- Sim.

- Óptimo. Não sei se te beije ou se te bata por agora achar que tudo o que vivi até hoje foi medíocre.

quinta-feira, março 10, 2005

Abismo.




Gostava de adormecer e sonhar com a ponta da tua língua a tocar na minha. Leve como o véu da noite. Lenta como as marcas do tempo na pele. Só assim, a tocar sem mais nada. No escuro das nossas bocas cerradas, como o dos olhos fechados ou o deste quarto. Coisas que se soldam e trocam, correntes de ar que passam para não morrermos e sangue que muda de direcção sem aviso.

A ponta da tua língua, só assim, a tocar a minha, como se isso não fosse tudo.

quarta-feira, março 09, 2005

Há um tempo atrás escrevi:

Não somos nós que fazemos Amor. É o Amor que nos faz.

Hoje apeteceu-me escrever outra vez.

O Amor é a língua universal.


É tão inquestionável que penso até ser a única verdade indubitável que escrevi até hoje. Sinto-me orgulhoso perante esta junção de letras.

Não que tenha sido eu a lembrar-me deste lugar incomum, fico é a olhar para o sujeito como quem olha para a mão de um carrasco. Fico com um sabor estranho na boca. E no peito.

terça-feira, março 08, 2005

“Amo-te”




- Então? Deixas-me assim para o fim-de-semana? Só com esta palavra, sem outra explicação ou beijo arrebatado?

- Tem que ser. Guarda-a bem. Olha que está habituada a andar sempre comigo.

domingo, março 06, 2005

Basta-me olhar pela janela para ver logo outro continente.



Estou em casa a fazer a cama, coisa insignificante mas das mais importantes, e ocorre-me o gosto que tenho em ficar em casa. Nunca poderia dar um bom drogado ou alcoólico por culpa própria: prefiro a minha realidade a outra qualquer.

Sempre que quero fugir é para aqui, para ao pé dos meus cheiros, da barba por fazer e da luz que entra pelo pátio. Fumei durante 10 anos e foi uma desgraça. Nunca consegui fumar mais do que 10 ou 15 cigarros por dia. Estou condenado a aturar-me para o resto da vida tal como sou. E gosto. Se calhar é a minha realidade que é demasiado irreal.

sexta-feira, março 04, 2005

Ferimentos ligeiros.

- Não trouxeste a saia que tínhamos combinado.

- Não. Não está tempo para isso. Parece que estás a desenvolver uma espécie de fetiche com essa saia.

- Cuidado. As palavras saia e fetiche na tua boca e usadas na mesma frase podem ter efeitos devastadores.

- Ficas inconsciente?

- Inconsciente não. Susceptível.

quinta-feira, março 03, 2005

Cá vamos cantando e rindo, mas pouco.



Depois de rodar pelo tempo, a opinião volta-me uma e outra vez sem se perder: nascemos para amar e para mais nada. Apenas ocupamos o tempo com ninharias e ofícios.

As distracções são tantas que a maior parte das pessoas esquece isto aos oito ou menos. Parece que queremos fugir uns dos outros, dos abraços e das atenções. Alimentam-se distâncias, privacidades que se chamam solidão e preza-se o espaço individual de cada um. No fundo respeita-se a tristeza e a falta de coragem para o sorriso desconhecido.

Abraçamos pouco, beijamos pouco e choramos pouco.

Tenho um amigo que de vez em quando levanta-se, dirige-se a uma mulher bonita e diz qualquer coisa como “Obrigado por ter vindo neste comboio e pelo tempo que passei a olhar para si. É muito bonita e o meu dia começou melhor por sua causa”. Mas isto é só um amigo que eu tenho. Não conheço mais nenhum ajuizado que faça isto.

Não me admiram as casas de velhas onde os relógios e a vida pararam na viuvez.

quarta-feira, março 02, 2005

No peito dos desafinados também bate um coração.



Esta é a minha música. Imagino que a nossa cabeça se arrume de forma semelhante. Pelo menos, se campasse, era assim que se dispunha. Poemas, sons, letras e tardes que não rimam comigo. Tudo em caixas transparentes, alinhadas por ordem nenhuma ou por cores, que, para o caso, é a mesma coisa. Algumas esquecidas dentro de ti, outras perdidas. Para mim é claro que nunca devolverás o silêncio que te emprestei.

terça-feira, março 01, 2005

Eterno retorno.



O que não tem retorno incomoda-me. Seja uma decisão, um sonho ou um prato partido.
Aflige-me a ausência que marca com a dor de uma rês ferrada. Uma cadeira sem dono, um telefone que não vale a pena tocar ou uma febre que rouba uma voz para sempre.

Uma saudade, se pode ser morta, não é uma saudade. Se não pode, também não é.